Estrutura: Sailors on the Starless Sea

Uma das coisas que os livrinhos verdes publicados no Brasil pelo Marquês de Saraiva nos legaram é a noção de que o point crawl é uma espécie de lingua franca da experiência RPGística. Ao longo dos diferentes títulos da coleção, tivemos hex crawl (no início de O Templo do Terror), city crawl (A Cidade dos Ladrões) e, é claro, dungeon crawl (O Feiticeiro da Montanha de Fogo, O Calabouço da Morte), modalidades emuladas através de descrições em parágrafos numerados conectados entre si por referências do tipo "Se quiser falar com o mago, vá para 154".

Para escrever os livros, Steve Jackson e Ian Livingstone desenhavam mapas tradicionais para as dungeons e depois estruturava um fluxograma com os números dos parágrafos por cima.

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Podemos, é claro, reconstituir esse fluxograma das relações de referência entre os números simplesmente folheando os livros. Eis, por exemplo, o início de A Cidadela do Caos:


Os nós em vermelho são parte do caminho mais curto para a solução do livro. Imagem feita no Gephi.

Fazendo essas análises dos livrinhos verdes, me ocorreu uma ideia: e se, utilizando esse método, tentássemos reconstruir a estrutura de uma aventura "convencional" (isto é, não-solo)? Não se trata de recriar os mapas das dungeons, mas sim de construir diagramas simplificados e altamente abstratos que ilustrem as conexões entre as áreas. Será que o grafo resultante revelaria algum insight útil para a construção de aventuras? Será que há alguma característica estrutural que faz com que uma aventura seja boa? 

Como eu estava prestes a mestrar Sailors on the Starless Sea, talvez a aventura-funil mais emblemática de DCC, resolvi começar por ela.

[A descrição a seguir contém SPOILERS da aventura. A descrição a seguir fará mais sentido se você já tiver lido o módulo.]

Eis a forma como representei a estrutura da aventura:

As arestas indicam conexões entre as áreas, que podem mudar ao longo da aventura. Quanto mais sólida a aresta, maior a facilidade de acesso entre as áreas no contexto da ficção. Acesso fácil não significa menor letalidade (afinal, estamos falando de DCC 😏). A seta indica uma via de mão única.

O que esse grafo revela? Em primeiro lugar, chama a atenção que a área D (pátio da fortaleza) funciona como um hub, isto é, tem muito mais conexões que a média das outras áreas. É interessante que esse hub está posicionado relativamente no início da aventura, podendo ser acessado por duas entradas diferentes (áreas B e C). 

Creio que a existência e o posicionamento desse hub ilustram como o autor Harley Stroh, talvez de forma inconsciente e intuitiva, conseguiu criar consonância entre a estrutura e o conteúdo ficcional da aventura. Afinal, no começo, os personagens estão procurando pelos aldeões desaparecidos, e esse verbo pode ser bem aproveitado através da exploração das áreas reveladas a partir do pátio.

A segunda parte da aventura (mapa 2, áreas 1-1 a 1-5A) é consideravelmente mais linear. Isso corresponde a uma mudança no verbo-chave que passa a dominar o conteúdo ficcional a partir da área H: os personagens passam a seguir os rastros dos bestiais que parecem ter raptado os aldeões. 

Essa linearidade é uma característica de várias das aventuras de DCC RPG publicadas pela Goodman Games. É suficiente para tolher a agência dos jogadores, transformando a experiência em railroading? Penso que não; o railroading ocorre quando o mestre força a mão, induzindo os personagens a seguir determinado caminho, mesmo que ele não seja o único possível da perspectiva ficcional. Aqui, temos uma situação na qual a própria estrutura da aventura tem um único caminho a ser percorrido; o mestre virtuoso tem de permitir que, a qualquer momento, os personagens desistam de percorrer esse caminho, abandonando a aventura. O único comprometimento irreversível ocorre quando os personagens entram no barco entre as áreas 1-4 e 1-5.

Enfim, essa estrutura com duas entradas que logo desembocam em um hub, afunilando (o trocadilho aqui é intencional!) para uma segunda metade linear, parece ser uma boa receita a se seguir. Talvez não por acaso, uma estrutura semelhante acaba sendo gerada pelo Point Crawl Template do Goblin's Henchman.

Do ponto de vista da arquitetura da rede de conexões entre as áreas, talvez seja interessante notar que o gráfico gerado por esta aventura está mais próximo do modelo "sem escala" (scale-free), que contém hubs, do que do "aleatório" (random), no qual as conexões estão distribuídas de forma mais homogênea.

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Uma discussão sobre essa taxonomia das redes pode ficar para um próximo post, mas por enquanto basta dizer que o modelo sem escala talvez seja mais inteligível e crie interações mais naturais no contexto do RPG, pois está presente em diversos fenômenos com os quais temos familiaridade: desde a estrutura das relações de amizade até a topografia da própria internet.

Bem, com esse post tentei fazer uma análise de aventura que não fosse nem um relato de jogo, nem uma review. Espero que tenha sido interessante; comente aí o que você achou!

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